quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Manaus - Índios da etnia Tuyuka, de São Gabriel da Cachoeira, norte do Amazonas, participam da 61ª Reunião Anual da SBPC Foto: Antonio Cruz/ABr


Espiritualidade indígena: A noite como construção da vida!

(Trechos de artigo escrito por:
Pe. Justino Sarmento Rezende *
* Indígena da etnia Tuyuka. Sacerdote Salesiano. Mestre em Educação (Diversidade Cultural e Educação Indígena). Diretor da Missão Salesiana e pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo)

Você está vendo a noite como ela é vista de uma aldeia? Olhe para cima! Quantas estrelas! De tamanhos diversos! De distâncias diferentes! Os meus avôs sabiam os nomes de muitas estrelas e isto para eles era muito importante. A posição de cada uma delas determinava o tempo, o tempo de fazer roça, de pescaria, de caçada, anunciava o tempo de verão, tempo de chuva. O firmamento e as estrelas situadas em diferentes distâncias, diferentes tamanhos e seus movimentos é um livro aberto com muitas mensagens para quem sabe ler! Neste sentido eu sou analfabeto, pois não fui educado na academia da aldeia! Os meus avôs, os meus pais e meus parentes são mais conhecedores do que eu, neste campo! Uma explicação interessante de meus pais era essa: quando aparece a lua nova, às vezes, uma estrela está bem próxima da lua. A explicação que os meus pais me davam era a de que duas pessoas humanas estavam para casar, logo, logo; outra vez a estrela aparece um pouco afastada da lua. Neste caso, diziam que havia pessoas que se amavam, mas não intensamente e que demoraria a sair o casamento. A partir destas explicações dava para entender que o ser humano e as constelações se comunicam. O cosmo possui suas linguagens com as quais se comunicam com os seres humanos e seres vivos. Os humanos e as estrelas interagem!

Olhe para cima e tente entender! Os meus avôs eram sábios e conhecedores! Eram cientistas! Ninguém pode dizer que os índios não conhecem nada. Conhecem e conhecem bem muitas coisas! Eles conheciam o mundo muito melhor do que as novas gerações. É impossível entender tudo! Entendemos bem pouco destas constelações e suas linguagens.

Falando da importância de uma aldeia Tuyuka quero falar para você sobre a importância dos anciãos e eles de noite meditam, pois para eles a noite é fonte de inspiração, de previsão do dia seguinte, é o melhor momento para avaliar o que se passou durante um dia. As coisas que já aconteceram, talvez nunca mais voltem! Se voltarem, serão com formas e intensidades diferentes. Os acontecimentos passados deixam muitas lições para as nossas vidas, lições que podem servir para o dia de hoje e para os dias futuros. Eu acredito muito mesmo que cada um de nós é aquilo que é e que tem por causa do passado. Os nossos avôs construíram muitas riquezas e nós somos herdeiros delas.

Os anciãos ficam sentados no escuro. Na boca da noite eles se juntam na casa de um dos anciãos para conversar. Enquanto conversam mascam o ipadu e fumam o cigarro. São elementos que os leva para os outros níveis de pensamentos sobre a vida humana. Eles conversam sobre funcionamento da casa, os trabalhos das roças, a procriação, o andamento da aldeia, os relacionamentos com as pessoas de outras culturas, indígenas e não-indígenas. Assim é que eles vão aprofundando o sentido da existência humana. As ações tuyuka resultam de reflexões realizadas pelos anciãos.

Os anciãos com os seus sensos apurados refletem sobre o futuro de todos os homens e as mulheres da aldeia. Os nossos anciãos são os nossos protetores, seres divinos. A força divina atua através da presença de anciãos: fortes, às vezes enfraquecidos, desgastados, encurvados pelo peso do trabalho, adoentados, deitados na rede ou sentadinhos ao lado do fogo, meio sujos, olhando para baixo, como se estivesse dizendo: estou para voltar à terra para tornar-me terra novamente! Tornar-se terra para fazer frutificar os trabalhos dos filhos e netos!

Os anciãos com as sabedorias adquiridas pelas experiências ao longo de vários anos transitam pelos diversos mundos que circundam o ser humano. Eles sobem no patamar de cima, descem no patamar de baixo, percorrem pelos quatro cantos do universo, do sol nascente ao poente, do leste ao oeste. Os quatro cantos simbolizam quatro portas. Por uma dessas portas entramos para nascermos nesta vida e por uma delas sairemos para ir para outro mundo, essa saída será a nossa morte. A vida é algo que veio trazida de fora e entregue ao homem e a mulher. Por isso, durante a vida os anciãos com seus benzimentos criam uma estabilidade humana dentro deste espaço a que eu me referia acima.

Quantas sabedorias carregam nossos anciãos! Cada ancião é uma biblioteca, impossível de ser lida. De uma biblioteca só conseguimos ler algumas obras, de preferência do nosso gosto. Assim são os nossos anciãos, deles só conhecemos algumas coisas. Muitas coisas vão embora com eles quando eles deixam de viver neste mundo. Quantas coisas nós já perdemos. Estas sabedorias não são coisas que cavando os túmulos podemos trazê-las de volta para os nossos dias. Todas estas sabedorias são bens imateriais, invisíveis. Por isso que são importantes os rituais, as cerimônias de cantos e danças, pois através deles, algumas pessoas recebem, por revelações, os saberes de nossos antepassados [cantos, discursos, danças, ritmos, benzimentos...]. Mais do que isso, algumas crianças, principalmente netas de sábios desde o momento do nascimento já são preparadas. Também, os pais devem se cuidar bem de suas próprias vidas e da de criança, pois assim a criança, através dos sonhos receberá conhecimentos de seus antepassados. Quando se tornar adulto será um pajé, benzedor, mestre de canto e danças, etc. Desta maneira é muito importante a responsabilidade dos pais sobre os seus filhos.

Você está compreendendo qual é o sentido do ancião na cultura tuyuka? Um dia nós, também, tornaremos anciãos. Será que estamos nos preparando para sermos anciãos sábios? Aqui na aldeia tornar-se ancião é tornar-se sábio, conhecedor do mundo, da vida, do além-vida, etc. Tornar-se ancião é tornar-se apaziguador, pessoa de equilíbrio, pessoa que benze para defender a vida. O ancião sábio benzedor é salva-vida, curador, mestre da vida. As práticas de sua vida testemunham o valor de sua vida, vida das pessoas, vida de diferentes povos. O ancião sábio não provoca brigas, mas é aquele promove a paciência, paz, harmonia, equilíbrio, reconciliação.

2 comentários:

almariada disse...

a nós espera-nos um lar de terceira idade onde seremos tratados por profissionais com cursos de geriatria que trabalham a contra-gosto para ganhar a vida...

Angela Ursa disse...

Almariada, infelizmente isso ocorre muito. A área de saúde há algum tempo está incentivando o atendimento técnico, distanciado. Beijos da Ursa