domingo, 20 de agosto de 2006

A última falante viva de xipaia
(Trecho de matéria publicada no site da
Revista Época )

Quando Maria morrer, a língua de seus ancestrais estará morta. Dá para salvar um
idioma da extinção?

Tânia Nogueira (texto)
Frederic Jean (fotos), De Altamira

Na língua dos índios xipaia não há uma palavra para designar "ano". Essa unidade de tempo não existe na cultura da tribo. Por causa disso, Maria Xipáya nem sabe quantos anos tem. Na carteira de identidade que ganhou da Funai, a data de nascimento é 19 de abril de 1928. (Quando não se sabe o dia do aniversário, é padrão na entidade atribuir uma data aproximada. No caso dela, o Dia do Índio.) Maria mora numa casa localizada num bairro simples da cidade paraense de Altamira. Ela é a última falante viva de um idioma que está morrendo. Não tem ninguém com quem conversar em sua língua materna. Os demais xipaias já esqueceram boa parte do idioma.
"Quando eu morrer, morre comigo um certo modo de ver", escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade em um de seus poemas mais famosos, "Desfile". A frase, válida para seres humanos, serve também para idiomas. Quando morre uma língua, grande parte da cultura associada a ela desaparece. "Cada língua é uma cultura e uma visão de mundo", diz Aryon Dall'Igna Rodrigues, coordenador do laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília (UnB) e um dos maiores especialistas brasileiros no assunto. Não é à toa que, em grego, uma mesma palavra - logos - significa linguagem e pensamento.
As línguas costumam morrer em silêncio. O principal sinal de envelhecimento é deixarem de ser ensinadas às novas gerações. Quando isso acontece, o final é quase irreversível. "Qualquer língua que não seja mais transmitida às crianças está em situação crítica", diz Aryon Rodrigues. Antropólogos e lingüistas acreditam que, se nada for feito, algo entre 50% e 90% das cerca de 6 mil línguas faladas no planeta vão desaparecer neste século. Quando Cabral chegou ao Brasil, a população de índios era de 6 milhões a 10 milhões segundo estimativas. Hoje, calcula-se que são 170 mil. Em 1500, os índios falavam cerca de 1.300 línguas. Sobraram 181.
As línguas deixam de ser usadas quando seus falantes não precisam mais dela. Quem impede o desaparecimento completo de uma língua salva toda uma cultura e uma visão de mundo. s Os esquimós usam palavras diferentes para se referir a tonalidades de branco imperceptíveis para quem não vive na região Ártica. Se eles desaparecessem, essa diversidade cultural também sumiria. Por isso, um idioma salvo da extinção é motivo para comemorar.
No Brasil, salvar idiomas é especialmente importante dada a biodiversidade lingüística do país. Enquanto na Austrália os 200 idiomas indígenas catalogados são todos variações de uma única família, por aqui há várias famílias independentes. A maior parte delas pertence a dois troncos principais, o tupi e o macro-jê. A língua xipaia pertence ao tronco tupi.
Os xipaias deixaram de utilizar seu idioma quando abandonaram a tribo para viver na cidade. Recentemente, a Funai demarcou as terras dos xipaias e alguns deles voltaram a morar no mato. A aldeia fica a dez dias de barco de Altamira. Para lá seguiram 36 índios da etnia, nenhum deles com fluência no idioma nativo.
Alguns lembram de uma palavra ou outra, como os parentes mais próximos de Maria. Duas de suas primas, Izabel e Odete, se recordam de algumas frases em xipaia. Um amigo, João, conhece nomes de bichos e plantas na floresta. Mas isso seria insuficiente para manter um diálogo, caso eles se encontrassem com freqüência. Como são idosos, os quatro dificilmente saem de casa e se vêem pouco. Os filhos, netos e bisnetos de Maria não falam o idioma ancestral.
Embora seja difícil impedir a morte de uma língua, é possível evitar sua extinção. O latim é uma língua morta, pois não é mais falado. Mas não está extinto. Restam textos latinos que ainda são estudados e preservam a cultura que deu origem a vários idiomas vivos. Da mesma forma, o xipaia pode morrer, mas não será extinto. Desde 1988, a professora de Lingüística da Universidade Federal do Pará (UFPA) Carmen Lúcia Reis Rodrigues trabalha ao lado de Maria Xipáya. Ela registra o vocabulário, presta atenção a nuances fonéticas, tenta entender as regras gramaticais e está criando uma ortografia para o idioma. Ainda neste ano, Carmen pretende finalizar um dicionário. O xipaia era dado como extinto até os anos 80. Foi quando Carmen, então estagiária do Museu Paraense Emílio Goeldi, e o lingüista americano Denys Moore descobriram Maria e viram uma oportunidade de salvar o idioma de seus ancestrais.
O nome xipaia aparece em relatos dos primeiros missionários e viajantes que chegaram à região dos rios Xingu, Iriri e Curuá, no Pará, no século XVII. Em 2002, eram apenas 595 pessoas. A família de Maria parece pertencer a um grupo que se manteve relativamente afastado dos costumes dos brancos. Ela afirma que, até o dia s de seu primeiro casamento, jamais tinha entrado numa igreja e que, até então, não era batizada. O tio de Maria, Durica, era o pajé da tribo. Sua filha, Izabel, prima de Maria, afirma que costumava vê-lo incorporando espíritos e fazendo suas curas. Uma vez Maria diz que passava muito mal do estômago. O pajé foi chamado e disse que ela tinha ingerido a comida de uma panela que ficara aberta durante a noite. "O bicho da escuridão tinha cuspido lá dentro", diz ela. Ela afirma que, depois das rezas e dos remédios do tio, ficou boa.
Na época do Ciclo da Borracha, no século XIX, e durante a Segunda Guerra Mundial, os seringueiros usaram os xipaias e os curuaias, outra tribo da região, como guardas dos assentamentos de seringueiros na selva. Foi aí que começou o contato com a cultura dos brancos. Quando criança, Maria diz que se fascinava com o modo de vida dos que falavam português: "Eu achava bonito. Aquelas roupas limpinhas, branquinhas, tudo arrumado. As meninas me chamavam para ajudar a lavar roupa. Eu adorava. Queria que minha mãe fosse como a mãe delas, que não comesse na folha de bananeira e depois jogasse no meio do mato".

8 comentários:

Jonas Prochownik disse...

Um texto comovente e sincero !
Assim como tudo o que você nos apresenta em seu blog.
Parabéns !

Anônimo disse...

Acabei de me lembrar de vc. Adoro esta floresta! E aí encontro outra querida, a Kristal. Vou dar um pulinho por lá.
Beijos!

Jôka P. disse...

ÔBA ! É a festa na floresta !
A Gená, a Kris e eu, balançando juntos na sua rede !
Adorei o nosso papo ao telefone !
Muitos beijos !
Jôka P.
:D

Angela Ursa disse...

Kristal, obrigada pelo carinho! Beijos floridos da Ursa :))

Eugênia, a floresta está sempre aberta para os amigos. Agradeço a sua visita! Beijos da Ursa :))

Amigo Jôka, a oca é sua!! Eu já preparei o chá com bolinhos para você, a Kristal, a Eugênia e os outros amigos que ainda não chegaram. Também gostei muito de falar com você por telefone hoje! Beijos carinhosos da Ursa :))

Anônimo disse...

Bom dia.....

A lingua indígena está estampada..esfregada em nossas caras a todo momento e não nos preocupamos..nem por curiosidade saber seu significado....
Bom dia ....
bjs...

Lia Noronha disse...

Ursa: as palavras se perdem no vento...o tempo as carregam sem piedade...Linda hoemnagem a essa mulher!
Beijo grande diretamente do meu Cotidiano silencioso.

Roy Frenkiel disse...

Que belo artigo, monumento importantissimo a circundar aos ouvidos alheios. Preciso de sua autoriza'cao para faze-lo, e caso o queira fazer pessoalmente, precisamos de voce!

bjx

RF

meu email: relimelech@hotmail.com

Entre em contato ;-)

Matilda Penna disse...

Comovente, bonito, verdadeiro.
Espero que o xipaia não seja extinto, que Maria Xipáya passe tudo que saiba e que tudo seja resgistrado sim.
Beijos, :).